quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O ADORÁVEL CARNIÇA

- O Carniça vem aí - sussurrava a galera maldosa. Mas a culpa era do próprio Duda, inimigo mortal do banho. Seu desmazelo incomodava. Molambudo, usava um par de tenis que nem o mendigo da praça catava, se jogasse fora.
E o cheiroso não estava nem aí com a gozação que a turma tinha na ponta da língua.
- Essa camisa marrom até que orna, cara.
- É branca, meu.
Quando ele aparecia no boteco do seu Mané num dia chuvoso, abafado, entornando um sutil aroma, a metade da freguesia se mandava. "O Carniça dá prejuízo, sô!", gemia o bigodudo taverneiro que se mostrava amistoso, contudo, já que sua baiúca era forrada de mosquitos. Só arrepiava quando via o Duda coçando a cabeça. Um prodigioso esquadrão de caspas levantava voo e ia pousar na seara alheia.
Pois gambá também é filho de Deus. O catingudo viu a poupança jeitosa da Martinha e gamou na hora. Ocorre que a tanajura era fanática por limpeza e tão exibida que passava três horas arrancando na pinça os pelinhos dos sovacos.
Num supremo sacrifício, Duda tomou um banho caprichado. A dona Nice cronometrou: cinco minutos e 38 segundos, um recorde. Os mais bonzinhos disseram que o ralo entupiu. Mas tinha mexeriqueiro jurando que a velhinha usou uma pá para retirar o cascão acumulado na banheira e a balança honesta da farmácia marcou dois quilos a menos.
Duda vestiu roupa nova, passou goma na juba, perfume no rabo e foi se declarar, esperançoso.
O bairro inteiro fez apostas. O seu Mané cravou 20 por um contra o rapaz. O um a favor corria por conta de ser o rapaz meio chegado a Brat Pitt, pelo menos de perfil, enquando que a megera, nem de costas, no escuro, podia ser confundida com a Angelina Jolie. Em todo caso, a maioria falava em sururu, alguns prevendo até fatalidade.
Não é que o candidato saiu da casa da eleita cantarolando "O Sole Mio" em ritmo de samba? O seu Mané teve que assinar uma promissória. "O Carniça dá prejuízo, sô!", repetia desolado.
Ninguém acreditou que o chamego durasse, mas o Carniça, renascido, sujeitou-se por completo à tirania da jararaca e sofreu uma incrível metamorfose.
- Pra me merecer, só assim - arrotava a Martinha, toda pimpona - fedeu, escafedeu!
Andando na estica, o Duda, garboso, chique, esbanjava charme.
- O Carniça mudou, gente.
- Uai, pra onde?
A enxerida queria tudo asseado e se mantinha vigilante. Por coisinha de nada, um respingo de "ketchup" na gola, lá vinha a bronca.
- Que imundice, Duda. Bote outra camisa.
O requintado patrão do rapaz gostou da mudança. E reparou que o antigo Carniça trabalhava certinho, o que não era novidade, pois ele sempre foi esforçado no serviço. Só era sujinho.
Assim, Duda casou com a Denise, filha mais nova do patrão. Foram felizes para sempre.
Martinha? Que Martinha?