segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Meu filho Stefan, único "japonês" peão de rodeio do Brasil


O PORQUINHO FEDIDO

. Esta narrativa, de 1997, faz parte da série "Meu Filho Caubói".
. -Reprovei, mãe, reprovei! - anunciou o meu filho Stefan, voltando da escola e jogando a bolsa no sofá - Foi bom, não foi, mãe? Vou poder estudar o dobro.
. Minha mulher não se lembra se riu ou chorou.
. Stefan era divertido até a segunda série do primário quando escrevia "a dona Akiko é a melhor professora que tive em toda a minha vida" ou "a minha mãe é baixinha, gordinha, anda de fusca, usa blusa vermelha e calça azul". Minha mulher, horrorizada, percebeu que, com quatro filhos para criar, quando saía para as compras, usava sempre a mesma roupa.
. Mas tornou-se desordeiro, abominado pelos professores e temido pela garotada que mudava de calçada para não cruzar com ele. Vivia criando tumulto.
. Adorava animais e era ávido por cavalos.
. Um dia, trouxe uma galinha caipira. Depois outra, mais outra e encheu o quintal de galináceos. As aves dormiam empoleiradas nos galhos da mangueira, mas algumas resolveram morar na área dos fundos onde eu havia estendido uma rede para descansar. Virou um inferno. Havia cocô por toda a parte e o cacarejar incessante me deixava maluco.
. "É de raça, é de raça", argumentava a minha mulher, contaminada pelo avicultor nanico, "a miudinha é garnizé. Esta aqui, carijó". Mas não aguentei.
. Mandei sumir com a galinhada barulhenta que acabou trocada por um bando de pombos. Deu na mesma. Os pombos rechearam de cocô a área dos fundos e sabiam voar melhor, o que era um agravante.
. Mandei sumir com os pombos. Stefan obedeceu mas arrumou uma trinca de galos petulantes que invadiu o meu território para me desafiar, de peito estufado e olhar maligno, provocando arrepios. Dava medo.
. Topei com o carroceiro Haroldo, o valentão da cidade, que saía da cadeia onde esteve preso por desacato, pois encarou o sargentão da PM e berrou "tomá na peida, sô!".
. O Haroldo puxou conversa.
. - O Sté, aquele menino terrível, é seu filho, não é? Eita, adoro ele. É foda o moleque. Todo domingo, vem com o galo dele debaixo do sovaco e bota pra brigar.
. Fiquei sabendo que Stefan andava fazendo apostas na rinha clandestina da vila.
. Mandei dar sumiço nos galos que foram permutados por meia dúzia de coelhos enormes.
. O meu cão Cheyenne, que não ligava para as aves, invocou. Numa madrugada, com o Stefan ausente, matou-os um a um. Despertei quando Cheyenne perseguia o último deles. Os coelhos, acuados, emitem um silvo - shuiiii! - estranho e aterrador.
. Sonolento, não atinei de imediato com o que estava sucedendo. O cão agia em silêncio. Quando percebi, corri para fora. Era tarde demais.
. Meu filho voltou e enterrou os coelhos. Adotou um animalzinho que não parava de correr dentro de um cilindro rotativo e parecia haver sossegado.
. Mas bastou que eu fosse para Rondônia a serviço e a bagunça recomeçou com a chegada de uma novilha. A caçula Tatiana foi incumbida de cuidar dela, dando leite na mamadeira. Tatiana cumpriu a tarefa com medo de levar uma surra e minha mulher passou a comprar leite de vaca para alimentar uma vaca.
. Com o tempo, Tatiana acabou virando a mãe da vaquinha que a seguia por toda parte. Ela chorou quando Stefan levou a bezerra embora.
. Então, finalmente, apareceu no quintal um par de cavalos.
. O que ficou impregnado na minha mente foi, contudo, um porquinho fedido.
. Deitado na rede, senti o cheiro asqueroso de chiqueiro. "Quem é o doido que cria porcos em plena cidade?", pensei. Aí ouvi o som de passinhos e deparei com um leitãozinho mirrado me espiando. Ah! Devia ter suspeitado. Só podia ser coisa do Stefan. O meu quintal era o chiqueiro.
. - Leve esse animalzinho fedorento para longe daqui! - gritei bronqueado.
. O porquinho desapareceu, mas dias depois Stefan murmurou com os olhos úmidos:
. -Era meu presente para o pai comer.
. Senti um nó na garganta. Fazia calor. As nuvens brancas deslizavam de mansinho no céu azul e na minha cabeça tangiam diminutos sinos da fraternidade.
. Era véspera de Natal.

cartum selecionado no XXXIV Salão Internacional de Humor de Piracicaba


domingo, 7 de dezembro de 2008

O RUI GOSTAVA DE JANIS

. O Rui e o Kazu, meus primos, dividiam, em São Paulo, o compartimento do porão na casa do meu tio que era tio deles. Quando viajava para a capital paulista, dormia também no quartinho.
. Ficou meio confuso. não é?
. Vou trocar em miúdos. Eram cinco irmãos. A mais velha não conta, pois permaneceu no Japão e não acompanhou os pais (meus avós) que emigraram para o Brasil.
. O Kazu era o filho caçula do segundo, meu tio.
. O Rui era o quarto filho do terceiro, meu tio.
. Eu era o filho da mãe. Ou melhor, o quarto filho era mulher: minha mãe.
. O quinto era também mulher e casada com o tio que residia em São Paulo. No porão da sua casa, onde me hospedava de vez em quando, moravam o Rui e o Kazu.
. Deu para endender? Não? Então, desisto.
. O Rui e o Kazu viviam discutindo, pois tinham índoles completamente opostos. O Rui, corretíssimo, julgava a honestidade como o atributo indispensável a todos os seres humanos. O Kazu achava que o mundo se dividia em lobos e cordeiros, devido ao caráter obscuro e volúvel dos homens. Rui só admitia que fora o correto só havia o errado. Kazu insistia que entre os dois extremos existia o meio certo e o engano.
. Kazu estudava belas artes e o Rui era fiscal incorruptível da prefeitura de Sáo Paulo. Tornou-se lendária a monstruosa multa que aplicou na igualmente monstruosa indústria de cigarros. Rui, quando se julgava certo, não arredava um centímetro sequer.
. Mas era também profundamente caridoso.
. Embora existisse bem ao lado uma passarela, um caboclo tentou atravessar correndo a pista da Rodovia Dutra que liga São Paulo ao Rio e acabou atropelado pelo Rui. Obviamente, a polícia o isentou de qualquer responsabilidade, mas ele sustentou a família do infrator e vítima durante meio ano, até ele se recuperar totalmente das fraturas.
. Para minha perplexidade, o bitolado Rui nutria uma estranha paixão pela exasperante Janis Joplin. Quando Kazu adormecia, cansado de discutir, para não perturbar o sono do primo, Rui pegava o violão, tocava e cantava Janis tão baixinho, que nem ele próprio conseguia ouvir, enquanto o ronco do Kazu abalava o quarteirão. Certa vez, afinei (à minha moda) o seu violão. Ele me presenteou com uma coleção inteira de LPs (não havia CDs na época) da cantora. Joguei tudo fora.
. Kazu continua sendo o mesmo cordeiro, se esforçando para virar lobo. Mas Rui já se foi. Morreu prematuramente num acidente de trânsito.
. Rui conhecia como ninguém o sentido da solidariedade.
. Ainda novo, com vinte e poucos anos, destinava mensalmente parte do seu ordenado para uma entidade que cuidava de crianças excepcionais. Minha tia, voluntária da assistência social, se encarregava de entregar a doação, sob promessa de não revelar a sua origem.
. Passados dois anos, a tia sugeriu:
. -Rui, você devia ao menos conhecer as crianças que tem ajudado tanto. Poderá sentir o drama de perto e descobrir que, além do conforto material, elas necessitam de muito, muito carinho. É véspera de Natal, venha comigo.
. Rui lotou o carro de brinquedos e foi. Voltou triste e sombrio.
. - Cheguei lá - relatou-me depois, com amargura - distribuí os presentes e me senti o Papai Noel. Mas na hora da refeição me fizeram comer com as crianças. Você conhece os excepcionais. São mongolóides, o nariz escorre, têm meleca nos olhos, e babam pela boca retorcida. Gaguejam e se lambuzam. A metade da comida voltava para os pratos e elas punham de novo na boca. Fiquei enojado. Engoli como pude a refeição que custava a passar pela garganta. Terminei de comer, mas não aguentei. Pedi licença, fui ao banheiro e vomitei tudo. Então me senti desprezível, insignificante e mesquinho. Um estúpido imaturo e pretensioso. Fiquei com inveja da tia e das senhoras que alimentavam os pequeninos como se fossem anjos. Quando conseguirei ser gente como elas? Quando?
. Vi pairar nos olhos oblíquos e estreitos do Rui um par de lágrimas brilhantes como estrelas.
. Nunca tinha visto lágrimas tão meigas e puras como aquelas.
. Elas continham toda a bondade do mundo.