domingo, 7 de dezembro de 2008

O RUI GOSTAVA DE JANIS

. O Rui e o Kazu, meus primos, dividiam, em São Paulo, o compartimento do porão na casa do meu tio que era tio deles. Quando viajava para a capital paulista, dormia também no quartinho.
. Ficou meio confuso. não é?
. Vou trocar em miúdos. Eram cinco irmãos. A mais velha não conta, pois permaneceu no Japão e não acompanhou os pais (meus avós) que emigraram para o Brasil.
. O Kazu era o filho caçula do segundo, meu tio.
. O Rui era o quarto filho do terceiro, meu tio.
. Eu era o filho da mãe. Ou melhor, o quarto filho era mulher: minha mãe.
. O quinto era também mulher e casada com o tio que residia em São Paulo. No porão da sua casa, onde me hospedava de vez em quando, moravam o Rui e o Kazu.
. Deu para endender? Não? Então, desisto.
. O Rui e o Kazu viviam discutindo, pois tinham índoles completamente opostos. O Rui, corretíssimo, julgava a honestidade como o atributo indispensável a todos os seres humanos. O Kazu achava que o mundo se dividia em lobos e cordeiros, devido ao caráter obscuro e volúvel dos homens. Rui só admitia que fora o correto só havia o errado. Kazu insistia que entre os dois extremos existia o meio certo e o engano.
. Kazu estudava belas artes e o Rui era fiscal incorruptível da prefeitura de Sáo Paulo. Tornou-se lendária a monstruosa multa que aplicou na igualmente monstruosa indústria de cigarros. Rui, quando se julgava certo, não arredava um centímetro sequer.
. Mas era também profundamente caridoso.
. Embora existisse bem ao lado uma passarela, um caboclo tentou atravessar correndo a pista da Rodovia Dutra que liga São Paulo ao Rio e acabou atropelado pelo Rui. Obviamente, a polícia o isentou de qualquer responsabilidade, mas ele sustentou a família do infrator e vítima durante meio ano, até ele se recuperar totalmente das fraturas.
. Para minha perplexidade, o bitolado Rui nutria uma estranha paixão pela exasperante Janis Joplin. Quando Kazu adormecia, cansado de discutir, para não perturbar o sono do primo, Rui pegava o violão, tocava e cantava Janis tão baixinho, que nem ele próprio conseguia ouvir, enquanto o ronco do Kazu abalava o quarteirão. Certa vez, afinei (à minha moda) o seu violão. Ele me presenteou com uma coleção inteira de LPs (não havia CDs na época) da cantora. Joguei tudo fora.
. Kazu continua sendo o mesmo cordeiro, se esforçando para virar lobo. Mas Rui já se foi. Morreu prematuramente num acidente de trânsito.
. Rui conhecia como ninguém o sentido da solidariedade.
. Ainda novo, com vinte e poucos anos, destinava mensalmente parte do seu ordenado para uma entidade que cuidava de crianças excepcionais. Minha tia, voluntária da assistência social, se encarregava de entregar a doação, sob promessa de não revelar a sua origem.
. Passados dois anos, a tia sugeriu:
. -Rui, você devia ao menos conhecer as crianças que tem ajudado tanto. Poderá sentir o drama de perto e descobrir que, além do conforto material, elas necessitam de muito, muito carinho. É véspera de Natal, venha comigo.
. Rui lotou o carro de brinquedos e foi. Voltou triste e sombrio.
. - Cheguei lá - relatou-me depois, com amargura - distribuí os presentes e me senti o Papai Noel. Mas na hora da refeição me fizeram comer com as crianças. Você conhece os excepcionais. São mongolóides, o nariz escorre, têm meleca nos olhos, e babam pela boca retorcida. Gaguejam e se lambuzam. A metade da comida voltava para os pratos e elas punham de novo na boca. Fiquei enojado. Engoli como pude a refeição que custava a passar pela garganta. Terminei de comer, mas não aguentei. Pedi licença, fui ao banheiro e vomitei tudo. Então me senti desprezível, insignificante e mesquinho. Um estúpido imaturo e pretensioso. Fiquei com inveja da tia e das senhoras que alimentavam os pequeninos como se fossem anjos. Quando conseguirei ser gente como elas? Quando?
. Vi pairar nos olhos oblíquos e estreitos do Rui um par de lágrimas brilhantes como estrelas.
. Nunca tinha visto lágrimas tão meigas e puras como aquelas.
. Elas continham toda a bondade do mundo.

3 comentários:

Elenita disse...

Querido Yoshimaro,
que lindo texto!
Emocionante a história, emocionante a sensibilidade de seu olhar sobre ela.

Um abraço, com muito carinho

Elenita

Unknown disse...

Muito delicado, e curioso! Um fã de Janes e da bondade! Abraços :)

Ella Fachin disse...

Admiro a solidariedade, humildade e a honestidade. Se um indivíduo carregar consigo isso, com certeza ele será uma ótima pessoa sendo rico ou pobre.

Abraço!