segunda-feira, 30 de março de 2009

O ALIMENTO ESPIRITUAL

. O que deve acontecer, fatalmente acontece, a não ser que consigamos alterar o curso das ocorrências através de sagazes ações preventivas. Há em tudo um sentido prático, físico. Para atravessar um rio caudaloso, utilizamos barcos ou construímos pontes. Se um tumor incomoda nosso organismo, temos de removê-lo cirurgicamente. Não iremos a parte alguma se não caminharmos.
. Para que servem, então, as orações?
. Por mais que supliquemos, se a casa pega fogo, o incêndio a consome. Enfermos, procuramos um médico, não um sacerdote. Este só saberia nos dar conforto ou a extrema-unção.
. No cotidiano, as orações nos parecem inúteis. É mais lógico procurar um novo emprego do que ficar rogando para que uma empresa que está falindo não nos demita.
. As orações são realmente estéreis quando nos limitamos a esperar inertes pelo milagre, pela ajuda, pela proteção divina. A oração funciona na medida em que robustece o espírito, dá animo, coragem e esperança. Se os fatos são imutáveis, podemos usar a fé para encará-los de forma diferente. Certamente teremos alento para enfrentar as dificuldades com determinação maior se concluírmos que somos nós mesmos que geramos os nossos milagres.
. "Rezar não muda Deus, mas muda a mim", diz C. S. Lewis, personagem do filme Terra das Sombras, na sensível interpretação de Anthony Hopkins.
. Ninguém nos precisa ensinar a ter fome. Basta um estômago vazio. Mas na escolha de um alimento adequado para saciar o apetite, vale o conhecimento, a experiência.
. A oração é um caminho eficaz para fortalecer o espírito e estabelecer o equilíbrio, fazendo aflorar aquela energia subterrânea, adormecida, que todos nós possuímos.
. A oração nos consola, nos estimula e nos ensina que, com fé e perseverança, podemos realmente mover montanhas.

domingo, 22 de março de 2009

Mensagem para Juju AS PORTAS DA VIDA

. Abra a porta, Juju. Não importa que o visitante taciturno use vestes puídas e rotas, tenha o rosto curtido pelos azares do acaso e, cabisbaixo, exiba aquela morbidez própria do andarilho que perdeu o rumo da vida. Não é pelo aspecto exterior que se julga as pessoas. A beleza autêntica está lá dentro. É a sensatez perene que transparece no fundo dos olhos, no sorriso franco, na voz honesta e clara, nos gestos comedidos e no esforço que faz para disfarçar a dor e a miséria que o arrastaram para o porão da existência. Estenda a sua mão amiga e deixe que ele se instale num cantinho bem aquecido do seu coração.
. Feche a porta, Juju. Repare no olhar embaciado do visitante que busca caridade vomitando impropérios contra tudo e contra todos. Veja como ele desfila infortúnios quase com altivez, cultiva a penúria, regando a angústia com lágrimas copiosas. O errante tagarela sente comiseração por si mesmo e se estriba na bondade alheia para sobreviver. Deixe o seu coração bem longe dos que se lastimam bradando "pobre de mim".
. Abra a porta, Juju. Não cultive preconceitos vazios. Só porque o visitante se veste com apuro, requinte e possui sinais de opulência, não significa que ele explore os mais humildes para ser o que é. Os menos favorecidos tendem a observar os ricos com desconfiança. É aquela corrosiva pontinha de inveja e ciúme que turva o olhar. Procurando camuflar a própria incompetência, insuflam intrigas ou partem para outro extremo, tornando-se aduladores rastejantes, farejando benesses, agrados e proteção. Encare serenamente a fartura e acabará descobrindo que a pobreza digna em nada desmerece o ser humano.
. Feche a porta, Juju. O atrevido visitante julga-se superior apenas porque empilha um punhado de ouro em seus cofres mesquinhos, como se a opulência fosse o barômetro da respeitabilidade humana. É o presunçoso que se compraz em ultrajar os fracos e engorda ludibriando e devorando os que cruzam o seu caminho. Não se omita fugindo pela tangente e dizendo "para mim ele é bom". Saiba que as dores alheias machucam os que têm senso de justiça social. Alegar "desde que não me prejudique" é demonstrar coragem pela metade. Meia coragem significa meia covardia.
. Abra a porta, Juju. O meigo visitante é o mais pobre dos pobres e também o mais rico dos ricos. Ele funde o amanhecer e o crepúsculo, a alegria e a dor, a nascente e a foz. Observe o seu olhar luminoso e beba a sua palavra. Com sua voz suave, aponta veredas como se todos os caminhos lhe pertencessem. Fala de princípios como se fosse o dono da verdade. Ele é o símbolo cristalino do amor e da justiça.
. Abra a porta e siga-o, Juju. Entregue o seu coração e você verá a luz.
. O seu nome é Jesus.

terça-feira, 17 de março de 2009

Alguns quadrinhos publicados na Folha de S.Paulo e na revista "Crás"da Abril











O RESERVA

. Ele apareceu conforme prometido. Cabelo engomado, sovaco aromático, banhado, jantado e prestativo.
. - É para você, meu bem - disse, exibindo um sorriso de atrair urubus e oferecendo uma caixa do bombom "Divino", estoque velho do armazém do pai.
. - Deixe por aí, Juca. Depois eu pego.
. Cris o tratava assim, no maior desprezo. Bonita, faceira, gostava de paquerar. Mas era mandona, egoísta e logo perdia o namorado. Entre um e outro, para não ficar sozinha, convocava Juca, o eterno suplente. Me paga sorvete, Juca? Pago! Me leva pra lanchonete? Levo! Ai, se não concordasse. Da boquinha mimosa saltavam insultos de corar o capeta.
. De parzinho novo, era um nem te ligo. Não tinha nem boa noite. Juca, conformado, perseverante, suspirava. Já, já briga e volta. Brigava mesmo.
. Então, chamava o Juca.
. - O reserva chegou - sussurrava a dona Geni, com pena do rapaz.
. - Manda esperar.
. - Posso comer o bombom? - murmurava a dona Geni, de estômago grande.
. E Juca, asseado, banhado, jantado, esperava, esperava, esperava.
. Alguns ficavam condoídos.
. - Nem beijinho, Cris?
. - Naquele beiçudo? Nem que a vaca tussa.
. Um dia, tendo levado um tremendo fora, na fossa, Cris chamou Juca. Podia até conceder um beijo. Depois escovava os dentes.
. Mas o capacho não veio.
. -Está noivo - disseram - de casamento marcado. Tem até proclama no cartório.
. - E quem é a eleita do boboca?
. - A Lucinha, da farmácia.
. - Aquela solteirona mofada? He, he, he! - zombou Cris, fervendo de raiva.
. Então o Juca me trocou por uma jereba? Além de feioso, tem gosto estragado. Ressentida, Cris nem conseguiu dormir. E arquitetou, espumando, uma vingança malígna.
. Usaria um vestido chiquérrimo, bem decotado, os seios quase espirrando, vermelho e justinho, como Juca gostava. E curto, para exibir as pernas perfeitas e irresistíveis. Nem o padre tirava os olhos. O penteado no capricho, manicure, pedicure e aquele rebolado de entortar até ceguinho. Batom? Da cor do pecado.
. Virava princesa, rainha. Não, uma deusa. A deusa da paixão, deslumblante, fatal!
. Com um finíssimo perfume francês nas axilas depiladas, nas orelhas, em tudo quanto era dobra, estaria cheirosa, tão cheirosa que balançava até a imagem de São Francisco.
. O pentelho do Juca não aguentaria. Chegaria molhadinho no altar e ardendo de paixão, mil vezes arrependido, botava a jabiraca de escanteio, com um sonoro "não" e cairia aos seus pés, babando de amor.
. Um escândalo!
. Daí, a divina Cris, deixando atônita a galera, se retiraria em silêncio, digna, vingada, saboreando o assombro. Será que ouvi aplausos? He, he, he!
. De manhã cedinho, pediu ansiosa.
. - Mãe, preciso de um vestido novo.
. - Para quê? Você já tem tantos...
. - É especial. Pro casamento do Juca.
. A dona Geni, gordinha, deu uma bocada na polenta e respondeu mastigando:
. - Ora, filha, o Juca nem nos convidou.
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.
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sexta-feira, 6 de março de 2009

A VAIDADE PURA

. Quando a minha neta Juju era miúda, andava toda exibida, de bracinho erguido, ostentando um anelzinho de bijuteria.
. - Tão novinha e já é vaidosa - comentava minha mulher, com ternura.
. Que bom seria, ponderei, se a Juju conseguisse preservar essa vaidade pura e transparente.
. A vaidade cristalina é quase uma virtude, pois nos estimula almejar o melhor, embora satisfeitos com o que já temos.
. A vaidade, por si só, não ofende nem machuca.
. O que turva a vaidade é o critério comparativo, aquele sentimento nocivo que o ser humano vai assimilando à medida em que se torna adulto.
. Adquirida a noção do confronto, o anelzinho barato, tão bonito, se torna feio no exato momento em que alguém ostenta um mais caro, legítimo. O anelzinho continua igual, mas a cabeça muda.
. No relato infantil, a madastra da Branca de Neve pergunta: "Espelho, espelho meu, há alguém mais bela do que eu?". O tumulto começa por aí.
. A vaidade comparativa anda de mãos dadas com a inveja. Se o pretencioso, por mais imodesto que seja, é no máximo um chato, o invejoso causa danos aos seus semelhantes.
. A inveja é um sentimento parasita. Para que ela brote, é preciso que haja sempre o outro lado. Ninguém tem inveja de si mesmo.
. Vez por outra, constatamos que até mesmo o modesto é vaidoso, pois tem orgulho da sua vaidade.
. Não sendo concebível repelir a vaidade, procuremos mantê-la isolada na sua pureza e veremos que o anelzinho permanece lindo, sem ser ofuscado por um outro, mais caro, autêntico.
. Feliz é aquele que consegue dizer de coração: são dois belíssimos anéis, a bijuteria e o legítimo.
. Mas então surge a pergunta. O que seria do mundo sem as comparações? É confrontando que escolhemos o melhor.
. Tudo bem. Nesse caso, fatores como o bom senso e a razão, diluem a vaidade. Sem lógica, não há equilíbrio nas disputas.
. Sufocada a vaidade, podemos utilizar outro parâmetro: a genuína competividade.
. No esporte, por exemplo, o verdadeiro atleta é o que vence, não o que derrota os oponentes.
. Quem compete para vencer, na falta de adversários capazes, luta para se superar. O competidor que se satisfaz humilhando os antagonistas, por mais forte que seja, só produz conforme as circunstâncias.
. Todo competidor é basicamente vaidoso. Mas quem busca a vitória, usa a eventual derrota como alavanca. Quem adora derrotar os outros, quando perde, desiste.
. Sabiamente nutrida, a vaidade é o degrau da fama e da fortuna.

quarta-feira, 4 de março de 2009