segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O QUARTINHO DOS FUNDOS

. Vamos presumir que a nossa mente é aquele quartinho dos fundos onde nunca acolhemos visitas.
. Deve estar bagunçado, com a poeira da indolência acumulada nos cantos; os arquivos da memória confusamente empilhados, sebosos, bolorentos, carcomidos pelas traças do tempo; os móveis obsoletos disputando espaço com os mais recentes, trincando os caminhos da razão, do bom senso; o crucifixo da nossa fé dependurado tortinho na parede encardida das conveniências e o leito dos pecados guarnecido por cobertas maculadas com nódoas de recordações pouco louváveis.
. Arrumadinhos na estante, apenas os manuais de uso cotidiano.
. Sempre que o ambiente nos sufoca, abrimos a janela do lazer para observar a vida alheia, os mais discretos se limitando a espiar pela fresta das cortinas. Renovamos o ar e fingimos colocar em dia as pendências.
. Mas as impurezas permanecem.
. Que tal, vez por outra, executarmos uma faxina abrangente? Limpando e polindo os objetos de nossa estima, poderemos redescobrir toda a beleza que eles continham e reviver os tempos em que bastava um simples sorriso da garota cobiçada para que, embriagados de paixão, ficássemos insones.
. Jogando fora os trambolhos, acabaremos constatando que havia lugar de sobra para introduzir preciosas novidades.
. Num quartinho mais asseado, funcional e bonito, poderemos nos movimentar com maior desenvoltura, as idéias fluindo em abundância. Assim, poderemos aumentar a poupança do cofrinho da reflexão.
. Aquela antiga poltrona onde sentávamos, estufados de presunção e sofismas, poderia ser atirado no porão do esquecimento, colocando-se no lugar outra mais atual para nela nos acomodarmos, serenos e ponderados, a meditar com humildade.
. Teria chegado o tempo de recolhermos os cacos do vaso quebrado num momento de ira, apagando da lousa de ressentimentos as palavras ásperas e ofensivas que ouvimos do nosso desafeto, deixando de ruminar o amargo "um dia me paga".
. Poderíamos eliminar uma boa parte das músicas guardadas no baú da saudade, arrumando um cantinho para os inovadores ritmos em voga.
. Algumas cicatrizes são permanentes, mas se as cobrirmos com as vestes do otimismo e da boa vontade, acabaremos por esquecê-las.
. E quem sabe, em nossa varredura consigamos recuperar alguma pérola de sabedoria escondida na curva da existência.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

AS LIÇÕES DO BUDISMO

. Dizem no ocidente que os japoneses professam duas religiões harmonicamente: o xintoísmo e o budismo.
. Há um equívoco, se bem que sutil. Conversando com um japonês, fiquei sabendo que o budismo, em sua essência, não é considerado uma religião.
. De fato, Buda, venerando filósofo humanista, não é deus. Quanto ao xintoísmo, por imposição do general americano Douglas Mac Arthur, quando o Japão se rendeu na II Guerra Mundial, o imperador Hiroíto teve que abdicar da sua condicão de divinidade. Assim, o povo nipônico, embora preservando as tradições, é basicamente ateu em sua maioria.
. Mas o ministério budista é fascinante. Por exemplo, eles pregam que a felicidade é quando morre o avô, depois o pai, depois o filho, depois o neto. No início, não entendi. Mas eles infundem a ordem natural das coisas. Desgraça seria morrer o filho, depois o pai. Ou morrer o neto, depois o avô.
. O budismo nos ensina não apenas contemplar a natureza, mas assimilá-la, integrando-a à nossa existência.
. Numa escolinha primária, o diretor foi testar a percepção das criancinhas.
. - Quando fica bem frio, o que ocorre com a água? - perguntou.
. - Vira gelo - responderam.
. - E quando a neve derrete, o que acontece?
. - Vem a primavera! - exclamou um garotinho.
. Os japoneses comemoram a efêmera florada das cerejeiras. É o "hanami" (contemplação das flores).
. Quem conhece Bastos, no interior de São Paulo, minha cidade natal, pode em determinada época do ano visitar o clube de golfe local, fundado por japoneses e descendentes. É majestoso, com os ipês tingindo de amarelo as margens das pistas.
. Há uma lenda sobre um jardineiro japonês que cultivou dezenas de crisântemos. Quando desabrocharam, podou todos, exceto um, o mais belo, para exibi-lo aos visitantes.
. Os budistas conseguem incorporar a natureza que os envolve, formando um todo. Não observam, integram-se.
. É interessante. A idade vai modificando o nosso senso de observação. Um dia, ainda jovem, no Brasil, estava numa relojoaria quando vi uma senhora, já meio idosa, decidindo se comprava um colar de esmeraldas. "Fica bem?"- perguntava às amigas. Ela tinha um rosto sulcado de rugas, uma boca enorme e não era nem um pouco atraente. "De que adianta se adornar com esmeraldas, sendo tão desairosa?"- pensei na ocasião.
. Pois imaginem que, por ser feia, a mulher desistisse de se enfeitar, andasse descabelada e maltrapilha. Seria asquerosa e sua proximidade causaria repulsa e mal-estar.
. Idoso, acredito hoje que não importa o aspecto inato de uma pessoa. É obrigação de cada um de nós cuidarmos da aparência com esmero e decência.
. Em suma, a senhora enrugada merecia ostentar o colar de esmeraldas.
. É o que apregoa o budismo.

cartum humor

CARTUM CLASSIFICADO NO XXXV SALÃO INTERNACIONAL DE HUMOR DE PIRACICABA 2008

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O SORRISO ARREPIANTE

. Após muita insistência, um bancário de Rancharia, São Paulo, logrou convencer uma recatada donzela a acompanhá-lo a um motel. Mas equivocou-se e seguiu o trajeto errado. Foi então alertado timidamente pela casta mocinha que sussurrou: "Naquela esquina, você deveria ter virado para a esquerda".
. Daí em diante, ela o orientou direitinho, inclusive dentro do motel, indicando o local exato para estacionar o carro.
. Tempos depois, ouvi um relato idêntico em Presidente Médici, Rondônia, tendo como protagonista um funcionário da prefeitura.
. Como é que essas histórias se espalham?
. Talvez influenciado pelo surpreendente "The Dark Knight", filme que narra o embate entre Batman, o Cavaleiro das Trevas, e o sinistro Coringa, os japoneses resolveram esclarecer a origem de um boato propalado há 30 anos.
. Uma mulher surgia com uma máscara de gaze cobrindo a parte inferior do rosto e perguntava: "Você me acha bonita?". Em seguida, retirava o disfarce e e exibia uma horrenda boca, rasgada de ponta a ponta, num arrepiante sorriso petrificado e sardônico.
. Todos afirmavam possuir um amigo que havia topado com a medonha criatura.
. De boca em boca, os rumores foram difundidos em todo o arquipélago, de Kyushu a Hokkaido.
. Os jornais publicaram matérias instigantes e, em 1979, cerca de 90% das emissoras de rádio comentavam o assunto, a partir do recebimento de um "hagaki"(cartão postal).
. Até a polícia acabou envolvida e a proibição de alastrar a balela aguçou ainda mais o interesse e o pavor sobre o enigma.
. Segundo as averiguações, os desvarios tiveram origem na província de Gifu, fortalecendo-se a suspeita de que o burburinho tomou ímpeto nas redondezas da cidade de Minokamo, onde resido. Mais precisamente, a primeira aparição ocorreu no banheiro de um estabelecimento de ensino da pequena Yaotsu, com 10 mil habitantes, que fica ao lado de Minokamo.
. Constatou-se também que a assustadora supertição migrou para a Coréia do Sul, onde continuou provocando calafrios.
. Com essa pesquisa inútil, levantou-se uma curiosa hipótese. Na década de 70, houve períodos difíceis para os japoneses e o isolamento conseqüente fez do mistério uma forma original de aproximação. As pessoas buscavam o vínculo e o diálogo através do terror.
. Faz sentido. E se assim é, a megera deve estar rondando as escolas da Coréia do Norte.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

UM PAÍS QUE RENASCEU

. Os "experts" japoneses de música enunciam com profundo respeito, por extenso, o nome de Antônio Carlos Jobim e continuam aplaudindo o talentoso e afinado guitarrista e intérprete João Gilberto, longe da ruidosa torcida brasileira.
. O que os atrai é o ritmo, a cadência da bossa nova que, embora ungido pelo balanço do jazz, não perdeu sua origem auriverde. Apenas a requintou.
. Esse traquejo os nipônicos não possuem, ou não fazem o menor esforço para conseguirem.

. Um compositor japonês lastimava a existência de um abismo desunindo a moderna música japonesa e a antiga.
. Bem, não conheço abismos infindáveis. Por mais profundos que sejam, as superfícies apartadas estão ligadas em sua base.
. Culturalmente, sob muitos aspectos, o Japão do pós-guerra não mudou, renasceu. Em se tratando de música, não há conexão entre o novo e o velho. Eles cortaram as raízes da sua tradição milenar e alojaram, embora capengantes, no preceito americano.
. A apresentadora de TV, Akiko Wada, famosa no arquipélago, que interpreta canções tidas como modernas, não oculta a repulsa que sente pelo "enka", a tradicional melodia venerada por idosos. E atribui sua paternidade musical a dois ceguinhos geniais: Ray Charles e Steve Wonder.
. Por falta de referências, denomino os contestadores do timbre de Akiko Wada como "ukigussa generation" (geração flutuante).
. O prenúncio da globalização sacudiu o mundo. Ídolos como Elvis Presley ou James Dean ainda comovem os saudosistas. No Japão, não houve influência, mas adoção.
. É curioso escoltar os progressos da canção japonesa que antes continha versos quilométricos. Eles foram sendo reduzidos, buscando-se a essência das idéias concebidas.
. Mas em vez de difundir os padrões estéticos da melodia herdada dos antecessores, fizeram o inverso e tornaram-se prolixos. As estrofes foram esticadas num arremedo das longas canções alienígenas que mantiveram o hábito dos trovadores de encadear múltiplas situações para colorir o tema principal.
. Como toda imitação, perdeu-se a espontaneidade que emana, por exemplo, do comprido mas sublime Imagine de John Lenon.

Bem Vindo!


Estou iniciando as atividades neste blog.