domingo, 11 de outubro de 2009

O SAQUINHO DE PELAJEGUE (1984)

. A vinda de Wilson Modro, o Alemão, cabisbaixo, depois de constatar que o mal que lesou suas pernas é incurável, me afetou profundamente. Wilson é aquele rapaz maluco que cuidava da água e do esgoto em Bastos e foi embora para Rondônia, a 1.500 km pra lá de Cuiabá, Mato Grosso. Tão longe foi que gastou as pernas.
. A presença de Modro, contudo, mexeu com minhas memórias.
. Lembro-me, já fui um pródigo goleiro de futebol de salão na terra do Wilson Modro, a gloriosa e progressista cidade de Presidente Médici, em Rondônia, que, na realidade, pouco tinha de gloriosa , muito menos de progressista.
. Paradona, ela ganhou o apelido de Pelajegue.
. O brioso povão não gostou e passou a matar a foiçadas todo gringo que chamasse Pelajegue de Pelajegue, lá em Pelajegue. Coisas de Rondônia.
. Éramos o time do gabinete, formado pelo prefeito Cunha, o vice Carlão, o secretário Dito, o assessor jurídico Nelson Festi e eu, assessor de imprensa e goleiro improvisado. Na reseva ficava Dijeca, que era mulher.
. Compúnhamos uma equipe essencialmente ofensiva. Todos eram atacantes e ninguém defendia, exceto o "Sakita-lá-atrás" que aguentava a barra sozinho. Um polivalente zagueiro/goleiro.
. No jogo da minha estréia, abrimos o campeonato enfrentando os descalibrados marmanjos da Secretaria do Planejamento. O Cunha e a turma faziam gols adoidados na meta adversária. Como ninguém ficava na defesa, os caras do planejamento também chutavam pra valer contra o nosso arco, sob o qual me encolhia, rezando. Mas a turma do planejamento era ruím demais. A bola passava assoviando, por cima, pelos lados, de tudo quanto era jeito, mas fora. De repente, ela veio, direto na gaveta. Pulei de susto. A bola gentilmente bateu na minha mão e foi pro escanteio. O povão que lotava as arquibancadas gritou em uníssono, extasiado: "hê, hê, hê, goleirão!". O Cunha me cumprimentou efusivamente. "Fi-lo porque qui-lo" declarei orgulhosamente. Tranquilos, os nossos voltaram para o ataque e os do planejamento, deslumbrados e intimidados com a classe do goleirão, não mais incomodaram. Tirei uma soneca até o fim do jogo.
. Ganhamos de goleada.
. Até aí a noite era gloriosa. Resolvi sumir. Mas Cunha mandou vasculhar a Presidente Médici inteira para localizar o goleirão desaparecido. O vice Carlão me achou escondidinho na cozinha da casa do Alemão. Tive que voltar para um segundo jogo, na semi-final.
. "O Sakita finalmente chegou!"- berrou Wilson de Moraes, Corruíra, pelo alto-falante.
. Começou o jogo contra a Secretaria de Saúde. O comandante de ataque do adversário era um médico meio ceguinho, o Heitor, mas sua equipe acertava todas.
. Moraes, o Corruíra, narrador oficial de Pelajegue era um tremendo puxa-saco meu. Quanto mais me encolhia, mais ele bradava no alto-falante. "Mais um frangooo do Sakitaaa!", "O Sakitaaa engole mais um peruuu!". Mesmo quando não tomava nenhum gol, ele insistia em lembrar: "O Sakita está suando na expectativa de tomar mais um goool!".
. Eu já tinha mais frangos que o abatedouro da Cotia, quando a bola veio mansinha, rolando em minha direção. "Pelo menos essa", pensei. Agachei rápido e a bola passou por entre as pernas, devagarinho, indo morrer no fundo das redes. Fiquei vesgo segurando um punhado de ar. Todo mundo ficou olhando para mim, inclusive o Corruíra. Foi o melhor frango da noite. Corruíra, fascinado, esqueceu de ver quem era o autor do gol. Hesitou, gaguejou e concluiu: "Foi do Sakita mesmooo!". Igualmente perplexa, a galera que se espremia nas arquibancadas, deu uma paradinha, olhou bem e resolveu aplaudir "Hê, hê, hê, goleirão!". Foi a glória.
. Mas então, lá do fundo, um imbecil errou o meu nome e roncou firme: "É isso aí, saquinho!".
. A risada da galera foi tanta que a arquibancada veio abaixo.
. Conta o Alemão que o povão de Pelajegue ainda não parou de rir. E que o Corruíra é hoje o mais popular locutor da rádio de Ji-Paraná, um dos grandes polos econômicos de Rondônia.

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. Eleito pela torcida do mulherio que clamava "Queremos o Cunhão! Queremos o Cunhão!", o médico e ex-prefeito Cunha já morreu faz tempo, informa Charles Modro, filho do Alemão e igualmente médico, com quem brinquei quando ele era um toquinho de gente. Mas o Alemão, mesmo com um mal permanente nas pernas e um marcapasso no peito, continua vivinho, pesquisando orquídeas, para minha inveja, em Rondônia.
. Esta crônica foi escrita em 1984 e publicada pela Tribuna Bastense.

sábado, 10 de outubro de 2009

Ponto & Vírgula NÃO ERA CAVIAR (1986)

. Quando minha filhota, a doce Bia, e sua amiga Mirian Negreiro vieram pousar no meu pequeno e bagunçado ninho, meu coração batucou de ternura e a escura Conselheiro Furtado, no bairro da Liberdade, São Paulo, onde morava só, devido ao serviço, me pareceu a Avenida Tiradentes em dias de Carnaval.
. Poderia, afinal, jantar em casa.
. Voltei do trabalho e sentei-me à mesa, sonhando em degustar um suculento filé acebolado.
. Puseram diante de mim uma gororoba preta e indefinida.
. Caviar é que não era.
. Esperei pelo restante em vão.
. - Uê - perguntei - é só esse feijãozinho esquisito?
. - Mas não é feijãozinho, pai. É arroz queimado - respondeu a Bia, escondida atrás da porta.
. - E queimou assim, por inteiro?
. - Não, a parte branca nós já comemos.
. - Como é que vou engolir isso?
. - Bem - respondeu a Bia, cautelosa - fiz suco. Se o pai quiser...
. - Quero, desde que não seja de caju.
. - Ai, ai, vai sobrar suco de caju, Mirian.
. Mirian fez de conta que não ouviu e começou passar a vassoura mágica no carpete. A hora era imprópria e o barulho incomodava, mas já era tempo de retirar aquele pó acumulado há três, quatro ou cinco meses. Sei lá.
. Boa menina, pensei. Mas notei que ela nunca saía do lugar, de olho grudado no tititi das 7. Quando terminou, 60 cm2 de carpete estavam impecavelmente limpos.
. Na manhã seguinte, quando saí para trabalhar, as duas dormiam tranquilamente. Não tinham se suicidado como imaginei, esperançoso, na noite anterior.
. Deixei-lhes uma mensagem sutil, amontoando minhas roupas sujas bem diante da geladeira, coisa que elas abrem e fecham a todo momento. O truque não funcionou. O monte de roupas foi apenas removido para outro canto.
. - Ô, pai = advertiu Bia - nós lavamos nossas roupas, mas as suas, quem lava é você. Aqui é cada um pra si.
. Enxuguei minhas lágrimas de crocodilo e na primeira oportunidade transferi parte das minhas roupas para o montinho das meninas. Foi inútil. O meu montinho não tardou a recuperar o tamanho original, com minhas cuecas e camisetas sumariamente devolvidas.
. Guerra é guerra. Agora examino cuidadosamente minhas roupas usadas, antes de botá-las na pia, para não lavar, por engano, algum sutiã extraviado.
. Um mês depois, 3 quilos a menos, sinto-me um estranho no ninho. Quando vou tomar café, a garrafa térmica se limita a soltar um arroto molhado e a comida passou de trivial imutável para trivial mutilado. Até na panela esmaltada ( que custou uma nota) elas botaram fogo, por excesso de óleo.
. Mas no fundo, no fundo, Bia é uma garota sensível.
. Ontem, quando me viu triste diante de uma macarronada requentada pela terceira vez, se prontificou.
. - Se quiser, posso fritar um bife.
. E preparou um troço parecido com a capa da minha calculadora portátil.
. - É bife? Assim nanico? Um bifinho de nada?
. - Pelo menos é bonitinho - retrucou Bia magoada.
. - Mas não tem um pingo de dignidade.
. - É que comprei bianca e faltou dinheiro = explicou.
. - Então vou comer um pedaço dessa bianca.
. - Mas bianca não é comida, pai.
. - Não?
. - É revistinha de amor.
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. Esta crônica, escrita em 1986, foi publicada pelo Jornal Paulista. Bia é a Beatriz dos meus quadrinhos. E fiquei empinado quando um leitor escreveu para o jornal: "Fiquei surpreso ao ler a nova coluna de sábado do JORNAL PAULISTA, Ponto & Vírgula. A princípio pensei que se tratasse de um espaço publicitário, desses que apresentam um visual chamativo mas, no fundo, falam de um produto imbecil. Mas dei uma olhada e qual não foi minha surpresa ao verificar que não era nada do que pensava. O espaço era literário. A partir daí, passei a acompanhar as crônicas que são de qualidade superior a de muitos escritores da grande imprensa brasileira. Parabéns ao Yoshimaro Sakita". Roberto K. Morihissa. Capital (SP).
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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

LEVANTE, VOVÓ ! (1965)

. Importunei tanto a minha irmã caçula Setsuko, que ela fez beicinho e gritou: "Vovó, olha o Yoshimaro!". Num instante, já estava correndo pela porta afora, com a vovó ao meu encalço, empunhando uma vassoura. Mas não precisava correr muito. Afinal, tudo não passava de encenação. Ela fingia que estava furiosa comigo e eu simulava ter medo dela.
. A "perseguição" tornou-se um hábito. O transeunte podia observar atônito uma inusitada exibição. Um garoto fugindo, acossado por uma velhinha que brandia exaltada uma vassoura.
. À noite, feitas as pazes, repartíamos a cama, como bons amigos.
. Vovó então falava dos meus antepassados, desfilava fábulas, algumas de provocar arrepios.
. Cresci e chegou a minha vez de contar histórias. E até hoje a vovó me julga um grande mentiroso. Ela jamais acreditou em aviões supersônicos, energia nuclear, cinerama e outras excentridades e bobagens modernas.
. Havia uma distância enorme entre os ingredientes dos meus relatos e os personagens das narrativas da vovó, coalhadas de lobos ferozes, texugos mágicos, raposas astutas e almas penadas.
. Aliás, a vovó e eu vivíamos fingindo.
. Adolescente, com o pai falecido, comecei a trabalhar e adquiri o vício do fumo. Todas as vezes que me faltavam cigarros, costumava tomar "emprestado" um maço da vovó. Ela fazia de conta que não sabia de nada. Vovó mantinha um belo estoque de cigarros, pois dispunha de um generoso fornecedor, meu tio Haruichi, o Sakitão. Mas, ocupado demais, às vezes o Sakitão descuidava e o meu maço "desaparecia". Aí eu fingia que não havia notado o sumiço.
. Para ser honesto e pensando bem, acho que fiquei devendo a ela pelo menos três pacotes, pois apelava com maior frequência.
. Devo confessar também que não herdei a tenacidade da vovó para o trabalho. Sou um bocado preguiçoso.
. A vovó nunca gostou de ficar parada. Vivia construindo cercadinhos e formando pequenas hortas no quintal. Plantava cebolinha, berinjela, vagem e com frequência presenteava a vizinha brasileira, perguntando "quê baji?".
. Lembro-me que, no primeiro ano, as verduras e os legumes cresciam viçosos e bonitos. No segundo, nem tanto. No terceiro, ficava tudo nanico. De nada adiantava a vovó percorrer as ruas recolhendo esterco de cavalo para adubo. Aí, ela mudava o cercadinho para outro local e começava tudo de novo.
. Era uma horta ambulante.
. Com o tempo, a vovó passou a evitar as ruas. Parou de sair e deixou que as ervas daninhas invadissem a sua horta. É que suas costas se curvaram tanto que ela tinha vergonha disso.
. Hoje, a vovó não precisa mais se envergonhar. Ninguém mais repara nas suas costas. A doença tomou conta dela e ela está definhando, magrinha, magrinha, sem forças para se levantar da cama.
. Mas aqui, bem dentro do meu coração, há uma grande esperança de que a vovó resistirá por muito tempo.
. A vovó não se intimida com nada. Em casa, ela e eu somos os mais teimosos.
. Por isso mesmo, vamos teimar até o último alento.
. Não é, vovó?
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. Esta crônica, escrita em 1965, há 44 anos, foi publicada na Tribuna Bastense e reproduzida pelo Jornal de Tupã. No mesmo ano, Deus chamou a vovó. Câncer. Transcrevo o texto no blog por sugestão do advogado Carlos Veronezi, de Bastos. Caramba, que memória a sua, amigo!
. Outra coisa. Faz um tempão que parei de fumar. Sem dúvida, o cigarro é um cilindro de papel com brasa numa ponta e um idiota na outra.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O COFRINHO DA SAUDADE

. Com as empresas japonesas perdendo o fôlego, restou para muitos dekasseguis brasileiros o estreito caminho da volta. Vieram ao Japão estimulados pelo aroma do iene e retornam sem ver a cor das cédulas que garantiriam um futuro melhor.
. Para os que ficaram, reduzidos a fatias pouco edificantes os propósitos iniciais, não sobrou muita coisa. Neste lado do mundo, onde tudo parece igual, as esteiras correm vomitando peças, transformando seres humanos em engrenagens descartáveis. Com a crise econômica emperrando as fábricas, os produtores, impotentes, enxugam o quadro de empregados com demissões sumárias ou reduzem a jornada de trabalho.
. Chamuscada a meta inicial de acumular riqueza, evidencia-se a face do brasileiro dekassegui que busca paliativos, tentando colorir as paredes cinzentas da vida com as tintas baratas dos prazeres efêmeros. Não raro, acaba saindo pela tangente, semeando problemas.
. Da busca ávida de emoções que possam sufocar a aridez do cotidiano germinam, velados ou estridentes, incômodos dramas domésticos que vão pincelando o falatório dos conhecidos.
. A perspectiva de um difícil recomeço no Brasil despertou em muitos a idéia de criar raízes aqui, no arquipélago. Para outros, o período se tornou um intervalo, uma lacuna que apagou o passado e tornou o futuro uma incógnita.
. A vida, no entanto, é uma corrente contínua e, para cada dia, existe o ontem e o amanhã.
. Na lida das fábricas, a preocupação se resume ao presente. Contudo, fora delas é necessário preservar a idéia de que houve um passado no qual, bem ou mal, algo foi sedimentado. E que, numa mescla de planos e sonhos, há sempre um porvir.
. Toda ruptura implica em quebra. Nos seres humanos, em abandono. O rompimento machuca e dificilmente cicatriza.
. Não vamos confundir fugas com novas conquistas. A conquista adiciona. A fuga é ilusão de permuta. Às vezes dá certo, mas paga-se sempre um preço. É o caroço incômodo que fica entalado no fundo da consciência.
. Quando se respira apenas o presente, a fuga e a conquista se nivelam num mesmo patamar.
. A ilusão de que nada tem a perder leva o dekassegui a procurar obras de arte em supermercados. Precisa tomar cuidado. Pode estar gastando o dinheiro do cofrinho da saudade.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O ADORÁVEL CARNIÇA

- O Carniça vem aí - sussurrava a galera maldosa. Mas a culpa era do próprio Duda, inimigo mortal do banho. Seu desmazelo incomodava. Molambudo, usava um par de tenis que nem o mendigo da praça catava, se jogasse fora.
E o cheiroso não estava nem aí com a gozação que a turma tinha na ponta da língua.
- Essa camisa marrom até que orna, cara.
- É branca, meu.
Quando ele aparecia no boteco do seu Mané num dia chuvoso, abafado, entornando um sutil aroma, a metade da freguesia se mandava. "O Carniça dá prejuízo, sô!", gemia o bigodudo taverneiro que se mostrava amistoso, contudo, já que sua baiúca era forrada de mosquitos. Só arrepiava quando via o Duda coçando a cabeça. Um prodigioso esquadrão de caspas levantava voo e ia pousar na seara alheia.
Pois gambá também é filho de Deus. O catingudo viu a poupança jeitosa da Martinha e gamou na hora. Ocorre que a tanajura era fanática por limpeza e tão exibida que passava três horas arrancando na pinça os pelinhos dos sovacos.
Num supremo sacrifício, Duda tomou um banho caprichado. A dona Nice cronometrou: cinco minutos e 38 segundos, um recorde. Os mais bonzinhos disseram que o ralo entupiu. Mas tinha mexeriqueiro jurando que a velhinha usou uma pá para retirar o cascão acumulado na banheira e a balança honesta da farmácia marcou dois quilos a menos.
Duda vestiu roupa nova, passou goma na juba, perfume no rabo e foi se declarar, esperançoso.
O bairro inteiro fez apostas. O seu Mané cravou 20 por um contra o rapaz. O um a favor corria por conta de ser o rapaz meio chegado a Brat Pitt, pelo menos de perfil, enquando que a megera, nem de costas, no escuro, podia ser confundida com a Angelina Jolie. Em todo caso, a maioria falava em sururu, alguns prevendo até fatalidade.
Não é que o candidato saiu da casa da eleita cantarolando "O Sole Mio" em ritmo de samba? O seu Mané teve que assinar uma promissória. "O Carniça dá prejuízo, sô!", repetia desolado.
Ninguém acreditou que o chamego durasse, mas o Carniça, renascido, sujeitou-se por completo à tirania da jararaca e sofreu uma incrível metamorfose.
- Pra me merecer, só assim - arrotava a Martinha, toda pimpona - fedeu, escafedeu!
Andando na estica, o Duda, garboso, chique, esbanjava charme.
- O Carniça mudou, gente.
- Uai, pra onde?
A enxerida queria tudo asseado e se mantinha vigilante. Por coisinha de nada, um respingo de "ketchup" na gola, lá vinha a bronca.
- Que imundice, Duda. Bote outra camisa.
O requintado patrão do rapaz gostou da mudança. E reparou que o antigo Carniça trabalhava certinho, o que não era novidade, pois ele sempre foi esforçado no serviço. Só era sujinho.
Assim, Duda casou com a Denise, filha mais nova do patrão. Foram felizes para sempre.
Martinha? Que Martinha?

segunda-feira, 30 de março de 2009

O ALIMENTO ESPIRITUAL

. O que deve acontecer, fatalmente acontece, a não ser que consigamos alterar o curso das ocorrências através de sagazes ações preventivas. Há em tudo um sentido prático, físico. Para atravessar um rio caudaloso, utilizamos barcos ou construímos pontes. Se um tumor incomoda nosso organismo, temos de removê-lo cirurgicamente. Não iremos a parte alguma se não caminharmos.
. Para que servem, então, as orações?
. Por mais que supliquemos, se a casa pega fogo, o incêndio a consome. Enfermos, procuramos um médico, não um sacerdote. Este só saberia nos dar conforto ou a extrema-unção.
. No cotidiano, as orações nos parecem inúteis. É mais lógico procurar um novo emprego do que ficar rogando para que uma empresa que está falindo não nos demita.
. As orações são realmente estéreis quando nos limitamos a esperar inertes pelo milagre, pela ajuda, pela proteção divina. A oração funciona na medida em que robustece o espírito, dá animo, coragem e esperança. Se os fatos são imutáveis, podemos usar a fé para encará-los de forma diferente. Certamente teremos alento para enfrentar as dificuldades com determinação maior se concluírmos que somos nós mesmos que geramos os nossos milagres.
. "Rezar não muda Deus, mas muda a mim", diz C. S. Lewis, personagem do filme Terra das Sombras, na sensível interpretação de Anthony Hopkins.
. Ninguém nos precisa ensinar a ter fome. Basta um estômago vazio. Mas na escolha de um alimento adequado para saciar o apetite, vale o conhecimento, a experiência.
. A oração é um caminho eficaz para fortalecer o espírito e estabelecer o equilíbrio, fazendo aflorar aquela energia subterrânea, adormecida, que todos nós possuímos.
. A oração nos consola, nos estimula e nos ensina que, com fé e perseverança, podemos realmente mover montanhas.

domingo, 22 de março de 2009

Mensagem para Juju AS PORTAS DA VIDA

. Abra a porta, Juju. Não importa que o visitante taciturno use vestes puídas e rotas, tenha o rosto curtido pelos azares do acaso e, cabisbaixo, exiba aquela morbidez própria do andarilho que perdeu o rumo da vida. Não é pelo aspecto exterior que se julga as pessoas. A beleza autêntica está lá dentro. É a sensatez perene que transparece no fundo dos olhos, no sorriso franco, na voz honesta e clara, nos gestos comedidos e no esforço que faz para disfarçar a dor e a miséria que o arrastaram para o porão da existência. Estenda a sua mão amiga e deixe que ele se instale num cantinho bem aquecido do seu coração.
. Feche a porta, Juju. Repare no olhar embaciado do visitante que busca caridade vomitando impropérios contra tudo e contra todos. Veja como ele desfila infortúnios quase com altivez, cultiva a penúria, regando a angústia com lágrimas copiosas. O errante tagarela sente comiseração por si mesmo e se estriba na bondade alheia para sobreviver. Deixe o seu coração bem longe dos que se lastimam bradando "pobre de mim".
. Abra a porta, Juju. Não cultive preconceitos vazios. Só porque o visitante se veste com apuro, requinte e possui sinais de opulência, não significa que ele explore os mais humildes para ser o que é. Os menos favorecidos tendem a observar os ricos com desconfiança. É aquela corrosiva pontinha de inveja e ciúme que turva o olhar. Procurando camuflar a própria incompetência, insuflam intrigas ou partem para outro extremo, tornando-se aduladores rastejantes, farejando benesses, agrados e proteção. Encare serenamente a fartura e acabará descobrindo que a pobreza digna em nada desmerece o ser humano.
. Feche a porta, Juju. O atrevido visitante julga-se superior apenas porque empilha um punhado de ouro em seus cofres mesquinhos, como se a opulência fosse o barômetro da respeitabilidade humana. É o presunçoso que se compraz em ultrajar os fracos e engorda ludibriando e devorando os que cruzam o seu caminho. Não se omita fugindo pela tangente e dizendo "para mim ele é bom". Saiba que as dores alheias machucam os que têm senso de justiça social. Alegar "desde que não me prejudique" é demonstrar coragem pela metade. Meia coragem significa meia covardia.
. Abra a porta, Juju. O meigo visitante é o mais pobre dos pobres e também o mais rico dos ricos. Ele funde o amanhecer e o crepúsculo, a alegria e a dor, a nascente e a foz. Observe o seu olhar luminoso e beba a sua palavra. Com sua voz suave, aponta veredas como se todos os caminhos lhe pertencessem. Fala de princípios como se fosse o dono da verdade. Ele é o símbolo cristalino do amor e da justiça.
. Abra a porta e siga-o, Juju. Entregue o seu coração e você verá a luz.
. O seu nome é Jesus.

terça-feira, 17 de março de 2009

Alguns quadrinhos publicados na Folha de S.Paulo e na revista "Crás"da Abril











O RESERVA

. Ele apareceu conforme prometido. Cabelo engomado, sovaco aromático, banhado, jantado e prestativo.
. - É para você, meu bem - disse, exibindo um sorriso de atrair urubus e oferecendo uma caixa do bombom "Divino", estoque velho do armazém do pai.
. - Deixe por aí, Juca. Depois eu pego.
. Cris o tratava assim, no maior desprezo. Bonita, faceira, gostava de paquerar. Mas era mandona, egoísta e logo perdia o namorado. Entre um e outro, para não ficar sozinha, convocava Juca, o eterno suplente. Me paga sorvete, Juca? Pago! Me leva pra lanchonete? Levo! Ai, se não concordasse. Da boquinha mimosa saltavam insultos de corar o capeta.
. De parzinho novo, era um nem te ligo. Não tinha nem boa noite. Juca, conformado, perseverante, suspirava. Já, já briga e volta. Brigava mesmo.
. Então, chamava o Juca.
. - O reserva chegou - sussurrava a dona Geni, com pena do rapaz.
. - Manda esperar.
. - Posso comer o bombom? - murmurava a dona Geni, de estômago grande.
. E Juca, asseado, banhado, jantado, esperava, esperava, esperava.
. Alguns ficavam condoídos.
. - Nem beijinho, Cris?
. - Naquele beiçudo? Nem que a vaca tussa.
. Um dia, tendo levado um tremendo fora, na fossa, Cris chamou Juca. Podia até conceder um beijo. Depois escovava os dentes.
. Mas o capacho não veio.
. -Está noivo - disseram - de casamento marcado. Tem até proclama no cartório.
. - E quem é a eleita do boboca?
. - A Lucinha, da farmácia.
. - Aquela solteirona mofada? He, he, he! - zombou Cris, fervendo de raiva.
. Então o Juca me trocou por uma jereba? Além de feioso, tem gosto estragado. Ressentida, Cris nem conseguiu dormir. E arquitetou, espumando, uma vingança malígna.
. Usaria um vestido chiquérrimo, bem decotado, os seios quase espirrando, vermelho e justinho, como Juca gostava. E curto, para exibir as pernas perfeitas e irresistíveis. Nem o padre tirava os olhos. O penteado no capricho, manicure, pedicure e aquele rebolado de entortar até ceguinho. Batom? Da cor do pecado.
. Virava princesa, rainha. Não, uma deusa. A deusa da paixão, deslumblante, fatal!
. Com um finíssimo perfume francês nas axilas depiladas, nas orelhas, em tudo quanto era dobra, estaria cheirosa, tão cheirosa que balançava até a imagem de São Francisco.
. O pentelho do Juca não aguentaria. Chegaria molhadinho no altar e ardendo de paixão, mil vezes arrependido, botava a jabiraca de escanteio, com um sonoro "não" e cairia aos seus pés, babando de amor.
. Um escândalo!
. Daí, a divina Cris, deixando atônita a galera, se retiraria em silêncio, digna, vingada, saboreando o assombro. Será que ouvi aplausos? He, he, he!
. De manhã cedinho, pediu ansiosa.
. - Mãe, preciso de um vestido novo.
. - Para quê? Você já tem tantos...
. - É especial. Pro casamento do Juca.
. A dona Geni, gordinha, deu uma bocada na polenta e respondeu mastigando:
. - Ora, filha, o Juca nem nos convidou.
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sexta-feira, 6 de março de 2009

A VAIDADE PURA

. Quando a minha neta Juju era miúda, andava toda exibida, de bracinho erguido, ostentando um anelzinho de bijuteria.
. - Tão novinha e já é vaidosa - comentava minha mulher, com ternura.
. Que bom seria, ponderei, se a Juju conseguisse preservar essa vaidade pura e transparente.
. A vaidade cristalina é quase uma virtude, pois nos estimula almejar o melhor, embora satisfeitos com o que já temos.
. A vaidade, por si só, não ofende nem machuca.
. O que turva a vaidade é o critério comparativo, aquele sentimento nocivo que o ser humano vai assimilando à medida em que se torna adulto.
. Adquirida a noção do confronto, o anelzinho barato, tão bonito, se torna feio no exato momento em que alguém ostenta um mais caro, legítimo. O anelzinho continua igual, mas a cabeça muda.
. No relato infantil, a madastra da Branca de Neve pergunta: "Espelho, espelho meu, há alguém mais bela do que eu?". O tumulto começa por aí.
. A vaidade comparativa anda de mãos dadas com a inveja. Se o pretencioso, por mais imodesto que seja, é no máximo um chato, o invejoso causa danos aos seus semelhantes.
. A inveja é um sentimento parasita. Para que ela brote, é preciso que haja sempre o outro lado. Ninguém tem inveja de si mesmo.
. Vez por outra, constatamos que até mesmo o modesto é vaidoso, pois tem orgulho da sua vaidade.
. Não sendo concebível repelir a vaidade, procuremos mantê-la isolada na sua pureza e veremos que o anelzinho permanece lindo, sem ser ofuscado por um outro, mais caro, autêntico.
. Feliz é aquele que consegue dizer de coração: são dois belíssimos anéis, a bijuteria e o legítimo.
. Mas então surge a pergunta. O que seria do mundo sem as comparações? É confrontando que escolhemos o melhor.
. Tudo bem. Nesse caso, fatores como o bom senso e a razão, diluem a vaidade. Sem lógica, não há equilíbrio nas disputas.
. Sufocada a vaidade, podemos utilizar outro parâmetro: a genuína competividade.
. No esporte, por exemplo, o verdadeiro atleta é o que vence, não o que derrota os oponentes.
. Quem compete para vencer, na falta de adversários capazes, luta para se superar. O competidor que se satisfaz humilhando os antagonistas, por mais forte que seja, só produz conforme as circunstâncias.
. Todo competidor é basicamente vaidoso. Mas quem busca a vitória, usa a eventual derrota como alavanca. Quem adora derrotar os outros, quando perde, desiste.
. Sabiamente nutrida, a vaidade é o degrau da fama e da fortuna.

quarta-feira, 4 de março de 2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ESPETINHO DE MORCEGO


. A alma do Cido morava na barriga. Felicidade, para o glutão, era forrar a pança com gostosuras.
. Queria abrir restaurante. Comeria do bom e do melhor, e além de rechear o bucho, entupia o cofre de grana. Nutria aquele sonho bobo do cara que compra sítio só porque adora frutas, embora ache que aquela fileirinha de vorazes formiguinhas faça parte da decoração do pomar.
. O plano do restaurante engordou quando conheceu as irmãs Lilica e Lazinha. Estava até de olho num prédio vazio. Arrumadinho, servia.
. Achou primeiro a Lilica. Ela sapeava uma lanchonete que, para o Cido, fazia o melhor hambúrguer do mundo.
. Lilica era jeitosa, sedutora e cheirosinha. Entre um hambúrguer e outro acabaram enrabichados. Cido passou a frequentar a casa da Lilica e lá estava a outra, a lasanha, ou melhor, a Lazinha. A garota, de visual chocho, era uma chicória de feira e estourava fácil, feito pipoca.
. Lilica, um quindim, tinha aspirado toda a beleza da família. Lazinha, linguiça mofada, havia herdado o resto. Não sobrara quase nada.
. Mas o almoço, gente do céu, era divino. Requintado e saboroso. Cido babava só de olhar. Grunhia de prazer, feito porquinho famélico. E tome estrogonofe, espaguete, toucinho, bacalhau, casquinha de siri.
. Lilica, a bela, sentadinha à mesa, beliscava feito passarinho. Lazinha, a fera, arrumava os pratos, botava talheres, fatiava lombinho e disputava, ávida, com o Cido, a sobremesa cremosa.
. Cido, coitado, se dividiu. Seu coração era cativo da Lilica, mas o estômago, escravo da Lazinha. Com a Lazinha no restaurante dos sonhos, a grana iria tinir. Era batata. O dilema dos órgãos o fez cozinhar o galo, indeciso.
. Por fim, escolheu a Lazinha, embora se sentisse uma beterraba sem cor em marmita requentada, vendo a Lilica escorregar feito quiabo na sopa da amargura. Parou de frequentar a casa e, traiçoeiro, passou a cortejar a eleita na esquina da lanchonete.
. Pediu-a em casamento. Na falta de lagosta, a megera aceitou prontamente a sardinha.
. Foi uma festança no capricho. Teve até caviar (fajuto). A lasanha, digo, a Lazinha era insossa, mas Cido esperou ansioso pelo primeiro almoço.
. Quase se afogou no caldeirão da bruxa. Viu morcego, aranha, lagarto.
. - Faço o que posso - rezingou Lazinha diante da comidinha intragável com gosto de Deus me livre - meu forte é a arrumação. Sei é botar pratos na mesa.
. E com a pachorra de mulher casada, completou.
. - Mão boa tem a Lilica. E é rápida. Apronta o almoço e acha tempo para ficar na frente do espelho se empetecando. Eu é que não consigo. Pena que não dá para filar almoço na casa da mãe. Lilica te odeia. Também pudera...

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009