sábado, 10 de outubro de 2009

Ponto & Vírgula NÃO ERA CAVIAR (1986)

. Quando minha filhota, a doce Bia, e sua amiga Mirian Negreiro vieram pousar no meu pequeno e bagunçado ninho, meu coração batucou de ternura e a escura Conselheiro Furtado, no bairro da Liberdade, São Paulo, onde morava só, devido ao serviço, me pareceu a Avenida Tiradentes em dias de Carnaval.
. Poderia, afinal, jantar em casa.
. Voltei do trabalho e sentei-me à mesa, sonhando em degustar um suculento filé acebolado.
. Puseram diante de mim uma gororoba preta e indefinida.
. Caviar é que não era.
. Esperei pelo restante em vão.
. - Uê - perguntei - é só esse feijãozinho esquisito?
. - Mas não é feijãozinho, pai. É arroz queimado - respondeu a Bia, escondida atrás da porta.
. - E queimou assim, por inteiro?
. - Não, a parte branca nós já comemos.
. - Como é que vou engolir isso?
. - Bem - respondeu a Bia, cautelosa - fiz suco. Se o pai quiser...
. - Quero, desde que não seja de caju.
. - Ai, ai, vai sobrar suco de caju, Mirian.
. Mirian fez de conta que não ouviu e começou passar a vassoura mágica no carpete. A hora era imprópria e o barulho incomodava, mas já era tempo de retirar aquele pó acumulado há três, quatro ou cinco meses. Sei lá.
. Boa menina, pensei. Mas notei que ela nunca saía do lugar, de olho grudado no tititi das 7. Quando terminou, 60 cm2 de carpete estavam impecavelmente limpos.
. Na manhã seguinte, quando saí para trabalhar, as duas dormiam tranquilamente. Não tinham se suicidado como imaginei, esperançoso, na noite anterior.
. Deixei-lhes uma mensagem sutil, amontoando minhas roupas sujas bem diante da geladeira, coisa que elas abrem e fecham a todo momento. O truque não funcionou. O monte de roupas foi apenas removido para outro canto.
. - Ô, pai = advertiu Bia - nós lavamos nossas roupas, mas as suas, quem lava é você. Aqui é cada um pra si.
. Enxuguei minhas lágrimas de crocodilo e na primeira oportunidade transferi parte das minhas roupas para o montinho das meninas. Foi inútil. O meu montinho não tardou a recuperar o tamanho original, com minhas cuecas e camisetas sumariamente devolvidas.
. Guerra é guerra. Agora examino cuidadosamente minhas roupas usadas, antes de botá-las na pia, para não lavar, por engano, algum sutiã extraviado.
. Um mês depois, 3 quilos a menos, sinto-me um estranho no ninho. Quando vou tomar café, a garrafa térmica se limita a soltar um arroto molhado e a comida passou de trivial imutável para trivial mutilado. Até na panela esmaltada ( que custou uma nota) elas botaram fogo, por excesso de óleo.
. Mas no fundo, no fundo, Bia é uma garota sensível.
. Ontem, quando me viu triste diante de uma macarronada requentada pela terceira vez, se prontificou.
. - Se quiser, posso fritar um bife.
. E preparou um troço parecido com a capa da minha calculadora portátil.
. - É bife? Assim nanico? Um bifinho de nada?
. - Pelo menos é bonitinho - retrucou Bia magoada.
. - Mas não tem um pingo de dignidade.
. - É que comprei bianca e faltou dinheiro = explicou.
. - Então vou comer um pedaço dessa bianca.
. - Mas bianca não é comida, pai.
. - Não?
. - É revistinha de amor.
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. Esta crônica, escrita em 1986, foi publicada pelo Jornal Paulista. Bia é a Beatriz dos meus quadrinhos. E fiquei empinado quando um leitor escreveu para o jornal: "Fiquei surpreso ao ler a nova coluna de sábado do JORNAL PAULISTA, Ponto & Vírgula. A princípio pensei que se tratasse de um espaço publicitário, desses que apresentam um visual chamativo mas, no fundo, falam de um produto imbecil. Mas dei uma olhada e qual não foi minha surpresa ao verificar que não era nada do que pensava. O espaço era literário. A partir daí, passei a acompanhar as crônicas que são de qualidade superior a de muitos escritores da grande imprensa brasileira. Parabéns ao Yoshimaro Sakita". Roberto K. Morihissa. Capital (SP).
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3 comentários:

Querela disse...

Ótima essa crônica Seu Yoshimaro, embora já tenha pra lá de vinte anos, ainda esta atual... Agradável leitura...

Anônimo disse...

Mto linda!

hehe... gostei da guerra das roupas... hehe

mto bom!

ass

Yuri

Unknown disse...

Yoshimaro mto boa essa crônica.Mas a Bia naquela epóca era somente uma garota....Agora com certeza ela deve fazer um belo feijão arroz e bife acebolado!Pelo pouco que a conheci,me pareceu mto sensivel e delicada e mto bonita tbm! mande lembraças a ela! abçss