domingo, 11 de outubro de 2009

O SAQUINHO DE PELAJEGUE (1984)

. A vinda de Wilson Modro, o Alemão, cabisbaixo, depois de constatar que o mal que lesou suas pernas é incurável, me afetou profundamente. Wilson é aquele rapaz maluco que cuidava da água e do esgoto em Bastos e foi embora para Rondônia, a 1.500 km pra lá de Cuiabá, Mato Grosso. Tão longe foi que gastou as pernas.
. A presença de Modro, contudo, mexeu com minhas memórias.
. Lembro-me, já fui um pródigo goleiro de futebol de salão na terra do Wilson Modro, a gloriosa e progressista cidade de Presidente Médici, em Rondônia, que, na realidade, pouco tinha de gloriosa , muito menos de progressista.
. Paradona, ela ganhou o apelido de Pelajegue.
. O brioso povão não gostou e passou a matar a foiçadas todo gringo que chamasse Pelajegue de Pelajegue, lá em Pelajegue. Coisas de Rondônia.
. Éramos o time do gabinete, formado pelo prefeito Cunha, o vice Carlão, o secretário Dito, o assessor jurídico Nelson Festi e eu, assessor de imprensa e goleiro improvisado. Na reseva ficava Dijeca, que era mulher.
. Compúnhamos uma equipe essencialmente ofensiva. Todos eram atacantes e ninguém defendia, exceto o "Sakita-lá-atrás" que aguentava a barra sozinho. Um polivalente zagueiro/goleiro.
. No jogo da minha estréia, abrimos o campeonato enfrentando os descalibrados marmanjos da Secretaria do Planejamento. O Cunha e a turma faziam gols adoidados na meta adversária. Como ninguém ficava na defesa, os caras do planejamento também chutavam pra valer contra o nosso arco, sob o qual me encolhia, rezando. Mas a turma do planejamento era ruím demais. A bola passava assoviando, por cima, pelos lados, de tudo quanto era jeito, mas fora. De repente, ela veio, direto na gaveta. Pulei de susto. A bola gentilmente bateu na minha mão e foi pro escanteio. O povão que lotava as arquibancadas gritou em uníssono, extasiado: "hê, hê, hê, goleirão!". O Cunha me cumprimentou efusivamente. "Fi-lo porque qui-lo" declarei orgulhosamente. Tranquilos, os nossos voltaram para o ataque e os do planejamento, deslumbrados e intimidados com a classe do goleirão, não mais incomodaram. Tirei uma soneca até o fim do jogo.
. Ganhamos de goleada.
. Até aí a noite era gloriosa. Resolvi sumir. Mas Cunha mandou vasculhar a Presidente Médici inteira para localizar o goleirão desaparecido. O vice Carlão me achou escondidinho na cozinha da casa do Alemão. Tive que voltar para um segundo jogo, na semi-final.
. "O Sakita finalmente chegou!"- berrou Wilson de Moraes, Corruíra, pelo alto-falante.
. Começou o jogo contra a Secretaria de Saúde. O comandante de ataque do adversário era um médico meio ceguinho, o Heitor, mas sua equipe acertava todas.
. Moraes, o Corruíra, narrador oficial de Pelajegue era um tremendo puxa-saco meu. Quanto mais me encolhia, mais ele bradava no alto-falante. "Mais um frangooo do Sakitaaa!", "O Sakitaaa engole mais um peruuu!". Mesmo quando não tomava nenhum gol, ele insistia em lembrar: "O Sakita está suando na expectativa de tomar mais um goool!".
. Eu já tinha mais frangos que o abatedouro da Cotia, quando a bola veio mansinha, rolando em minha direção. "Pelo menos essa", pensei. Agachei rápido e a bola passou por entre as pernas, devagarinho, indo morrer no fundo das redes. Fiquei vesgo segurando um punhado de ar. Todo mundo ficou olhando para mim, inclusive o Corruíra. Foi o melhor frango da noite. Corruíra, fascinado, esqueceu de ver quem era o autor do gol. Hesitou, gaguejou e concluiu: "Foi do Sakita mesmooo!". Igualmente perplexa, a galera que se espremia nas arquibancadas, deu uma paradinha, olhou bem e resolveu aplaudir "Hê, hê, hê, goleirão!". Foi a glória.
. Mas então, lá do fundo, um imbecil errou o meu nome e roncou firme: "É isso aí, saquinho!".
. A risada da galera foi tanta que a arquibancada veio abaixo.
. Conta o Alemão que o povão de Pelajegue ainda não parou de rir. E que o Corruíra é hoje o mais popular locutor da rádio de Ji-Paraná, um dos grandes polos econômicos de Rondônia.

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. Eleito pela torcida do mulherio que clamava "Queremos o Cunhão! Queremos o Cunhão!", o médico e ex-prefeito Cunha já morreu faz tempo, informa Charles Modro, filho do Alemão e igualmente médico, com quem brinquei quando ele era um toquinho de gente. Mas o Alemão, mesmo com um mal permanente nas pernas e um marcapasso no peito, continua vivinho, pesquisando orquídeas, para minha inveja, em Rondônia.
. Esta crônica foi escrita em 1984 e publicada pela Tribuna Bastense.

3 comentários:

Querela disse...

Nasci em 84(e dai? rsrs..). Exelente, gostei muito mesmo, creio que a simplicidade aparente da história facilita a nossa identificação com as personagens... Me agradam crônicas sem excessivos floreios, dão a impressão de algo mais sincero e portanto mais belo (rimou!) e até original... Valeu a pena ter lido!

abraço!

Anônimo disse...

muito legal suas cronicas! acho delicioso a maneira como manipula o bom humor narrando situaçoes que geralmente nao olhamos com outro angulo que nao o senso comum.

=)

ah, deletei meu orkut faz um mes ja. apenas me ocupava o tempo... =)

se te visito por aqui, sempre tem uma surpresa agradavel!

^^

Emanuel Maia disse...

Sou filha do 'Alemão' e gostei muito da crônica... me fez recordar do pelajegue... a maneira como escreve me envolve como se estivesse presenciando, de fato, aqueles momentos. Um abraço, Saquinhooooo...