sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O MEU NETO POLIGLOTA

. Vez por outra, fico matutando sobre a vida quando ouço vozes e risadas infantis. São escolares passando diante da minha casa. A saudade aperta e vou deslizando mansamente, evocando os tempos idos, recosendo e aconchegando o período em que cuidava dos netos, hoje no outro lado do planeta: o nostálgico Brasil.
. Lembro-me da fase em que rejeitavam a comida na boca e tentavam usar talheres, lambusando-se todinho, mas se esforçando para ser auto-suficientes. Exatamente o inverso do velhinho astuto que, no hospital onde fiquei internado, mesmo sabendo utilizar os pauzinhos para comer, esperava que a enfermeira viesse alimentá-lo.
. O objeto preferido do meu neto Gabriel , quando mal andava, era um molho de chaves com o qual, no começo, saía procurando buracos, qualquer buraco. Mas não tardou a perceber que o buraco adequado para enfiar chaves era a fechadura que não conseguia alcançar. Pedia colo. Carregando-o, deixava exercitar sua vocação para banqueiro (arrombador de cofres, uma ova!).
Ele nunca acertava a chave, mas a dor nas minhas costas de halterofilista especializado em suspender um futuro banqueiro era infalível.
. Ele costumava também pegar uma caneta e escrever, em chinês, suponho, nas paredes, nas costas do meu casaco branco, enfim em toda parte, menos no caderninho que lhe entregava, pois só criança rabisca cadernos.
. Era todavia sistemático quando caía em suas mãos a agendinha que o pai aflito procurava há dias. Não sossegava enquanto não a preenchia inteirinha, em hebraico, desconfio. Nunca consegui descobrir se ele emitia cheques - sem fundo, é lógico - ou redigia um "best-seller".
. Até quando atirava pedrinhas, percebia que não era à toa. Logicamente, caçava um frango assado para o almoço. Às vezes me usava como alvo. Sendo pecador, eu merecia.
. Via-o tentando ajudar o pai, como qualquer bom filho. Enfiava todos os disquetes que encontrava no aparelho de som que, para ele, tinha a aparência mais próxima de um computador.
. Naquele tempo ainda fumava e meus isqueiros desapareciam misteriosamente, até que descobri que estavam sendo armazenados atrás da copiadora. Jamais decifrei se ele estava formando estoque para sua futura loja ou já sabia que cigarro podia dar câncer.
. Gabriel só agarrava os brinquedos quando apareciam visitas, fazendo questão de mostrar que eram seus, não meus. Quando os visitantes iam embora, voltava a jogar pedrinhas ou desenhar nas paredes obras que fariam inveja a Picasso.
. É engano pensar que criança adora bichinhos de pelúcia. Quem gosta é a sua mãe. O pequeno gosta mesmo é de arrastar aquele cobertor malcheiroso.
. O que o adulto chama de lazer é uma pausa temporária das responsabilidades e dos problemas. É busca de alívio e repouso. O indivíduo crescido gosta de se distrair e procura transmitir sua noção de divertimento aos filhos. Mas os petizes, quando pegam um brinquedo, estão sempre assumindo tarefas.
. Quando o miúdo cava uma fenda no quintal, pode ser início de uma trincheira ou o alicerce de uma fortaleza.
. Observem uma garotinha com sua boneca. Ela assume com dignidade o papel de mãe e, às vezes bronqueia ou suspira, farta da trabalheira, mas cumpre sua obrigação materna.
. Um garoto com o seu velocípede certamente está participando de uma corrida na Fórmula 1. Quando puxa um carrinho, está transportando a mudança de alguém. De graça.
. Em suma, criança gosta mesmo de trabalhar. À medida que cresce, vai se tornando cada vez mais preguiçosa. Quando vira adulto, a desdita se completa e passa a aguardar os feriados.

4 comentários:

Anônimo disse...

muito interessante,esta revivência

keiko eto

Ella Fachin disse...

Muito divertida a análise da infância, ri muito com a passagem do desenho na parede fazer inveja a Picasso. Hilário!
Lembrei de como era ser mãe de uma criança pequena.

Elaine

Koz Palma disse...

"Em suma, criança gosta mesmo de trabalhar. À medida que cresce, vai se tornando cada vez mais preguiçosa. Quando vira adulto, a desdita se completa e passa a aguardar os feriados."
Meu amigo, esta sua útima crónica me tirou garagalhadas, pela forma alegre e realista que foi composta, mas esta frase, mostrou-me como vamos com o passar dos anos perdendo nossa prestatividade e boa vontade...
Obrigado! e forte abraço!

Unknown disse...

Olá, Yoshimaro! Sou filha do seu amigo Carlos, quem me apresentou seu blog. Gostou muito de ler seus textos. Para mim, a maior beleza deles é a mistura de singelezas com o abstrato da filosofia, uma combinação bacana, pois torna o texto ágil, ele evolui não só com a narrativa de fatos. Continuarei lendo... Obrigada e abraços.